27 fevereiro 2005

Heresias

O estado de saúde do Papa é preocupante. A longa luta contra uma doença tão degenerativa quanto a Parkinson é agora agravada por problemas respiratórios que resultaram na necessidade de uma traqueotomia, que sendo uma técnica cirúrgica usual é na pessoa do Papa um mal suficientemente alarmante.
As televisões, preocupadas com as divina(i)s audiências dos fiéis, abrem os telejornais com esta notícia... Mesmo sem grandes novidades a acrescentar já que o boletim médico do Santo Padre é reservado e apenas será divulgado na próxima semana. É legítimo.
Porém isto despoleta ideias hereges em mentes criativas. Vejamos:

O Papa tem-se revelado dono de uma resistência enorme contra as sucessivas patologias que lhe foram já diagnosticadas. A sua equipa médica, ao serviço do Vaticano, é certamente composta por algumas das mentes mais experientes, bem como dos profissionais mais competentes na área da medicina.
A sua vida poderá ser então prolongada desumanamente já que é certa a sua recusa em renunciar ao cargo. Leva a peito, ele ou quem decide, o ensinamento mais ortodoxo da Igreja Católica.

A minha fé impede que me preocupe mais com a sua saúde do que com a de qualquer outro ser humano.
A minha fé permite que veja na Igreja Católica uma instituição que caminha para um paradoxo dogmático, isto é, em última análise, um insuportável desfasamento em relação à realidade social e humana.
A minha fé permite que o meu espírito questione o porquê do insistente desincentivo ao uso do preservativo ou a recusa dogmática da eutanásia sem que haja um esforço por fazer uma leitura mais avançada e nua de preconceitos dos dramas que o mundo infelizmente alberga.
A minha fé não é cega.

Estreou recentemente um filme espanhol, Mar Adentro, que trouxe de novo a problemática da morte assistida à discussão popular. Discutem-se os problemas de ordem ética médica e moral religiosa que tal possibilidade levanta.

Não é minha intenção nesta posta descodificar os limites e natureza de o que seria a eutanásia legal. É apenas, como referi, a de, fazer chocar situações tão extremas quanto estas relatadas, num cenário trágico para o catolicismo.

Como se de um filme se tratasse...talvez uma obra dramática, uma ópera, se deitasse um actor representando o Santo Padre no leito adoecido, rezando a Deus que lhe levasse a alma, ao ponto de sem se conseguir conter pedir agoniado a morte àqueles que são pagos para o curar.

Sem ousar castigar aqueles que pecam por proíbir a livre decisão humana, o livre arbítrio e a última palavra daqueles que sofrem. Apenas uma obra agitadora.

BSA

3 Comments:

At 28 fevereiro, 2005 11:41, Anonymous Anónimo said...

O pior que pode acontecer a uma questão tão polémica como a eutanásia é precisamente deixar de a discutir. Que se trata de uma questão delicada, que mexe com os cânones católicos, com as normas sociais, com a moral, todos nós sabemos, mas mais importante é não deixar de a discutir.
O que mais me assusta, na discussão deste tema, é olhar para o futuro e encontrar alguém que amo profundamente num leito vegetal, tal como Ramón Sampedro, em constante sofrimento; ou dar comigo mesmo em tal agonia que me leve a desejar a morte.
Talvez a discussão aqui se deva centrar não no direito à morte, mas no direito à morte com DIGNIDADE. Se todo o Homem tem direito a viver dignamente, então, porque raio não terá direito a morrer sem que lha tirem?

NAP

 
At 28 fevereiro, 2005 12:45, Anonymous Anónimo said...

Exactamente, caro NAP, é preciso discuti-la apesar de toda a sua delicadeza.
Não faz a morte parte da vida? Não somos nós que fazemos todas as nossas outras opções? Porque não, então, poder optar pela morte quando a vida já nada tem para nos oferecer?
Penso que a eutanásia deveria fazer parte dos direitos humanos. Direito à vida e direito também, a morrer com Dignidade.
Uma retirada de cabeça levantada, o realizar, acima de tudo, de uma vontade, também ela humana, de já não querer viver...
Olívia Santos

 
At 28 fevereiro, 2005 15:44, Anonymous Anónimo said...

Que se deva discutir a eutanásia, nada tenho a apontar! Que a vida é um bem precioso, acho que ninguém duvida!
Então, porque não, antes de discutir a eutanásia, preocuparmo-nos com o tipo de meios que se devem disponibilizar para tornar a vida daqueles que sofrem muito mais digna.
Sinceramente, acho que a vida tem sempre algo a oferecer, mesmo em casos extremos, o amor que sentimos por alguém deve ser aquilo que nos mantém vivos e nos leva a lutar cada vez mais.
Conheci muita gente cuja vida estava por um fio. Alguns morreram, outros nunca mais soube deles e calculo que já não estejam entre nós. A maioria dessas pessoas lutavam todos os dias para viverem um pouco mais, mesmo sofrendo muito.
E será que lutar não é a forma de, um dia, quando a morte chegar, nos encontrarmos com ela de cabeça erguida?
A eutanásia pode ser uma arma poderosa nas mãos de quem não a sabe utilizar. Acredito que sem limites rígidos cometer-se-iam grandes barbaridades. Em pouco tempo seríamos confrontados com pedidos de eutanásia que nunca existiram mas que foram executados, com médicos a negligenciar doentes pelo simples facto de que nada mais há a fazer.
E será que nada mais há a fazer?!
VMV

 

Enviar um comentário

<< Home